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MANIFESTAÇÃO EM FAVOR DA POLÍTICA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO

Atualizado: 7 de mai.

Comissão Nacional para a erradicação do trabalho escravo do MDHC manifesta sua extrema preocupação com uma grave e atual violação das normas da Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo — Conatrae, por meio de suas entidades e instituições integrantes, vem, perante os Exmos. Ministros de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, e do Trabalho e Emprego, manifestar sua extrema preocupação com uma grave e atual violação das normas da Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, a qual tem entre seus fundamentos: a clara definição do crime; a absoluta prioridade dada à integridade e aos direitos da pessoa vitimada; a cristalina articulação das atribuições definidas para combater tamanha violação dos direitos humanos.


O compromisso de erradicar a prática do trabalho em condição análoga à de escravo (ou trabalho escravo) no país foi assumido pelo Estado brasileiro perante seus cidadãos e perante a comunidade internacional, por meio de previsão legal insculpida no ordenamento jurídico do país, e pela adesão e ratificação de vários tratados e convenções internacionais.


A violação da obrigação internacional do Estado brasileiro de defender e promover os preceitos fundamentais relacionados à dignidade da pessoa humana — especificamente ao direito de não ser escravizada — já foi alvo de uma Sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, promulgada em 20 de outubro de 2016, no Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil, pela qual o país foi ao mesmo tempo reconhecido pelo valor da política nacional estabelecida e alertado quanto ao risco de retrocessos.


Não obstante a obrigação ‘erga omnes’ então reafirmada de combater um crime tido como crime contra a humanidade, a sociedade brasileira vem presenciando ultimamente graves violações à política nacional de erradicação do trabalho escravo, originadas em atos e omissões do próprio Estado brasileiro, conforme se passa a relatar.


Em 6 de junho de 2023, a Auditoria-Fiscal do Trabalho, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União realizaram de forma planejada um operativo conjunto, executado na forma conhecida como Grupo Móvel de Fiscalização, com a finalidade de verificar a possível ocorrência de “redução de alguém à condição análoga à de escravo”, em uma situação específica de trabalho doméstico que envolvia uma senhora laborando na residência do Sr. Jorge Luiz de Borba, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, e de sua esposa, Ana Cristina Gayotto de Borba.


Tal diligência foi executada no cumprimento de mandado de busca e apreensão expedido no âmbito do Pedido de Busca e Apreensão Criminal nº 65/DF.


A partir das investigações então levadas a cabo, ou seja: inspeção física no local de trabalho, tomada de depoimentos, entrevistas, análise documental, entre outros procedimentos técnicos, apurou-se que a senhora de nome Sônia Maria de Jesus, afeta ao serviço de empregada doméstica, hoje com 50 anos, havia sido submetida no passado a trabalho infantil e a tráfico de pessoas (por meio de adoção ilegal), e vinha sofrendo há quase 40 anos uma condição análoga à de escrava, em clara violação dos seus direitos humanos fundamentais. Em decorrência do flagrante realizado, a Sra. Sônia, uma mulher negra, com deficiência auditiva profunda (surdez bilateral), mantida analfabeta em português e libras, foi resgatada pelos servidores públicos federais (acompanhados por assistentes sociais, psicólogos e intérpretes de libras que participaram da operação), e retirada do trabalho em condição análoga à escrava, após décadas passadas nessa condição.


A partir de então, seguindo o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo, previsto na Portaria nº 3.484 de 06 de outubro de 2021, a Sra. Sônia foi acolhida pelo Sistema Único de Assistência Social, por meio de uma unidade de acolhimento especializada para mulheres vítimas de violência, e iniciou processo para favorecer sua integração social, passando inclusive a frequentar a Associação de Surdos da Grande Florianópolis. Na ocasião, começou a receber aulas de libras, português e artes e, pela primeira vez, experimentou uma convivência comunitária, adquirindo capacidades básicas para se comunicar e interagir com outras pessoas. Ou seja: começou a receber o exigido atendimento integral correspondente à condição de extrema e múltipla vulnerabilidade na qual fora encontrada.


No entanto, já na semana subsequente à da sua libertação, iniciou-se uma série de violações à Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo por parte de agentes do próprio Estado brasileiro.


1. Perseguição do Auditor-Fiscal do Trabalho coordenador do operativo


Inicialmente, sob pretexto de incorrência em violação de sigilo funcional por parte do Auditor-Fiscal do Trabalho coordenador do operativo, em razão de esse ter dado entrevista sobre o caso, foi dado início a inquérito policial em desfavor do agente público, iniciando-se um processo de perseguição ao servidor, em clara tentativa de retaliação à operação fiscal. Esse processo é uma afronta à instituição pública responsável pela coordenação das ações de combate ao trabalho escravo no país, qual seja, a Auditoria-Fiscal do Trabalho e, em última análise, à própria política nacional.


A incongruência da medida repressiva fica clara quando se considera os seguintes elementos:

I. Antes da entrevista concedida pelo Auditor-Fiscal do Trabalho ao programa Fantástico, da TV Globo, outras instituições participantes da operação fiscal já haviam concedido entrevistas sobre o caso. Por ocasião da entrevista que supostamente teria violado segredo de justiça, foram abordadas exclusivamente informações já amplamente repercutidas na imprensa em dias anteriores.

II. A própria família empregadora já havia exposto – e continuou a expor - fotos da trabalhadora, em desrespeito à sua intimidade.


O processo correcional e criminal ainda em curso deve ser analisado, portanto, como medida arbitrária, pois só tem como objetivo o de intimidar e dissuadir os agentes do Estado que têm como atribuição legal específica a de coordenar as ações de combate ao trabalho escravo.

Registre-se que os sigilos foram em tese impostos para proteger e resguardar a intimidade da vítima, mas não se aplicam aos possíveis agressores, evidenciando flagrante inversão dos objetivos da medida, para o benefício exclusivo dos supostos infratores.


2. Violação de direitos fundamentais da trabalhadora encontrada em condição análoga à de escrava.


Após o resgate, o investigado comunicou, em Nota à imprensa, que a suspeita de que ele tenha submetido essa mulher a trabalho análogo à escravidão era infundada pois se tratava de “um ato de amor”, por ela ter sido acolhida por sua família. Negou que tenha cometido crimes no caso. Na sequência, ele e sua esposa passaram a requerer no Juízo de Família em Florianópolis (SC) o reconhecimento da paternidade e maternidade socioafetiva e, em outra instância, a restituição do “convívio familiar”.


Em 8 de setembro, por decisão judicial, foi facultado ao Sr. Borba o direito de visitar a Sra. Sônia no local do seu acolhimento e de organizar o possível regresso dela para a mesma residência da qual fora resgatada, contrariando frontalmente as determinações das instituições que decidiram pelo seu resgate - Auditoria-Fiscal do Trabalho, Polícia Federal, Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho e Defensoria Pública da União –, e contrariando também a objeção formulada pela Defensoria Pública da União por meio de HC nº 232.303.


Tudo isso ocorreu sem oitiva ou consulta à família biológica da Sra. Sônia, com a qual, desde a infância, ela vive privada de contato e convivência.


Ressalta-se que o procedimento de retorno à residência da família Borba se deu sem que houvesse possibilidade de anuência expressa, clara e inequívoca da Sra. Sônia: tal possibilidade estava de qualquer forma descartada uma vez que, por ter sido privada de alfabetização em português e em libras, ela não tinha mínima condição para, naquele momento, compreender tudo o que lhe ocorria e para se expressar livremente. Chama a atenção também a pressa desarrazoada e inexplicável do prazo estipulado (quarenta e oito horas) para se cumprir a medida de retorno, em contraste brutal com os quase quarenta anos de uma convivência subalternizada na família empregadora.


Assim, em decorrência de determinação judicial, confirmada por instância superior, foi interrompido o processo incipiente de atendimento da Sra. Sônia para sua inserção no convívio social, bem como os demais procedimentos visando completar sua documentação civil e possibilitar-lhe o acesso à educação, saúde, trabalho decente, moradia e convivência com a família, elementos que, na ótica de uma atenção integral, conformam a política pública de combate ao trabalho escravo.


Tal medida violou ainda o sistema de proteção da mulher vítima de violência e os direitos fundamentais da pessoa com deficiência.


Conforme o exposto,

1.      Avaliamos como gravíssimo o atentado - ainda em curso - perpetrado contra as prerrogativas funcionais de agentes públicos que têm a missão, delegada pelo Estado brasileiro, de erradicar o trabalho escravo,

2.      Consideramos como gravíssima a revitimização - também ainda em curso - de uma trabalhadora doméstica inicialmente resgatada pelo próprio Estado e afastada da condição análoga à de escrava na qual fora encontrada e “retornada” à situação anterior.

Trata-se de uma sequência fática que, ao desconhecer, desvirtuar e violar os princípios basilares da Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil, gerou uma situação que, se for não for devida e rapidamente revertida, está criando um precedente gravíssimo, pois coloca em questão a efetividade e continuidade dessa Política Nacional.

Informamos inclusive que várias instâncias internacionais já foram alertadas: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatores especiais da ONU (Formas Contemporâneas de Escravidão; Violência contra Mulheres e Meninas; Direitos das Pessoas com Deficiência).


Por esses motivos, instamos os Exmos. Ministros de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, e do Trabalho e Emprego a adotarem todas as medidas cabíveis no exercício de suas atribuições, para salvaguardar a política pública responsável pelo combate ao trabalho escravo e pela sua erradicação, o que passa, necessariamente, pela proteção ao exercício profissional dos servidores que a executam.

 

Brasília, 15 de fevereiro de 2024.

 

Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

 

 

Assinam esta Manifestação as seguintes entidades e instituições:

 

Verité

Instituto Trabalho Digno

Instituto Trabalho Decente (ITD)

Defensoria Pública da União (DPU)

Organização Internacional do Trabalho (OIT)

Projeto Ação Integrada: Resgatando a Cidadania (ProjAI-RJ)

Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (SINAIT)

Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD)

Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (ANAFITRA)

Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO)

Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT)

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