O auditor-fiscal do trabalho Luiz Scienza, presidente do Instituto Trabalho Digno (ITD), alertou que a rotina de inspeção do trabalho no Brasil foi fortemente impactada pela pandemia da Covid-19. Para marcar o “Abril Verde”, mês de conscientização quanto à prevenção de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, Scienza conversou com a AMATRA1 sobre temas relacionados à saúde e segurança dos trabalhadores.
O auditor, que é professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade Medicina da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), destacou que a fiscalização tem atuado presencialmente apenas em situações críticas e emergenciais, como aquelas que envolvem trabalho análogo à escravidão e trabalho infantil. “Os demais auditores fiscais estão deslocados para atividades de fiscalização remota que, embora com limitações, podem trazer resultados”, explicou.
Scienza, abordou na entrevista o processo de revisão das Normas Regulamentadoras, que caracteriza como “um brutal retrocesso para direitos e garantias dos trabalhadores”. Ele citou a reedição da NR nº1, que passou a atribuir aos empregadores todo o processo de classificação e decisão para o controle dos riscos inerentes ao trabalho.
“As decisões dos empregadores estarão imunes à ação do Estado mesmo em condição de risco evidente à saúde das pessoas. A nova redação aboliu critérios técnicos ou quaisquer travas legais para definição de descritores e classificação dos riscos”, disse.
Entre outros tópicos, Luiz Scienza também apontou a importância da emissão da CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) para todos os acidentes decorrentes da prática laboral, já que a notificação comunica um evento com possível nexo previdenciário e é fundamento para a tomada de medidas preventivas.
Veja a entrevista na íntegra:
AMATRA1: Atualmente, você preside o Instituto Trabalho Digno. Como surgiu o Instituto e qual seu propósito?
Luiz Scienza: O Instituto Trabalho Digno nasceu da busca da reflexão sobre as várias dimensões que cercam o trabalho humano. Diante de um valor tão importante para nós, por que tantas vezes é negligenciado? Por que a perversidade de tratar pessoas como colunas em um balancete? As infinitas respostas possíveis estão depositadas nas gavetas da Sociologia, do Direito, das Ciências Sociais e da Saúde, mas também repousam no ritmo alucinado da vida real. Auditores-fiscais do trabalho têm uma inserção incomum a outras categorias, representando o Estado nos rincões mais distantes do país, no labor com supressão da liberdade, no dia a dia que corrói a saúde - uma condição privilegiada para compreender fatos e pensar soluções. O ITD é uma associação nacional, sem fins lucrativos, dedicada a estudos e pesquisas no campo da promoção do trabalho digno/decente, também com uma interface na formação da cidadania. Somos uma entidade jovem e independente, fundada na Ciência e no Humanismo como instrumentos para pensar o Trabalho e que, em 28 de abril, fará apenas quatro anos de fundação. Esperamos contribuir na imensa tarefa de construir um Brasil mais justo.
A: Como explica o que são as Normas Regulamentadoras (NRs) e como elas se relacionam com o chamado trabalho digno?
LS: As NRs são expressões de um pacto social sobre a saúde dos trabalhadores, e não apenas regulamentam disposições da lei ordinária. Talvez limitadas, certamente imperfeitas, atualmente atécnicas e injustas, mas, ainda assim, são um pacto. Como parte da regulação de Estado sobre o trabalho e sua relação com a saúde, apresentam impactos não apenas sobre o presente das trabalhadoras e trabalhadores, mas até sobre a expectativa de direitos futuros, como a aposentadoria especial. A crise sanitária provocada pela Covid-19 demonstra o valor imensurável da saúde, a importância que deve ser dada a cada vida humana. Neste contexto, as NRs são fundamentais e ajudam a expressar, como dispositivos similares em outros países, nossa imensa responsabilidade com as mudanças e garantias.
A: Como as NRs são elaboradas e qual a importância da observância de um sistema tripartite paritário, como orienta a Organização Internacional do Trabalho (OIT)?
LS: As regulamentações de Saúde e Segurança do Trabalho no Brasil são elaboradas no sistema tripartite, que deveria ser um espaço de negociação equilibrado entre as representações de trabalhadores, empregadores e governo. Um modelo existente mesmo antes de sua incorporação, como estratégia de conciliação entre o capital x trabalho, na prática da OIT. No entanto, a conjunção da mais radical e antissocial Reforma Trabalhista, iniciada em 2017, com a posse de um novo governo e de seus compromissos com a fração mais daninha do capital, descaracterizou profundamente o processo. Houve uma ruptura com o modelo anterior, inclusive com a extinção de várias instâncias setoriais de discussão tripartite. O governo repaginou o processo, agora estruturado para o atendimento de premissas por ele estabelecidas. Há como discutir saúde do trabalhador, se um dos seus fundamentos é “retirar o Estado do cangote do empresário”? As representações de trabalhadores foram duramente atingidas por medidas antissindicais. Como encontrar o equilíbrio?
A: Quais são as principais alterações implementadas pela denominada “modernização” ou revisão das NRs? É possível afirmar que há um propósito de revisão das NRs que, a pretexto de desburocratizar, pode aumentar os riscos de acidentes de trabalho?
LS: O processo está em andamento. Até o momento, a revisão das NRs é um brutal retrocesso para os trabalhadores. A “modernização” das NR é apenas outra etapa da Reforma Trabalhista. Entre dezenas de alterações que trarão impactos negativos aos trabalhadores e ao Poder Judiciário, temos a reedição da NR nº 1. Um novo texto passa a vigorar a partir de agosto, inserindo na regulamentação elementos para a gestão de riscos ocupacionais. O texto atribui todo o processo de classificação e decisão para o controle dos riscos exclusivamente aos empregadores e assessores contratados. As decisões dos empregadores estarão imunes à ação do Estado mesmo com risco evidente à saúde das pessoas. A nova redação aboliu critérios técnicos ou quaisquer travas legais para definição de descritores e classificação dos riscos. Um empregado ocupacionalmente exposto aos vapores de substância capaz de induzir a carcinogênese humana, sem qualquer proteção efetiva, pode ter caracterizado o nível de risco como “baixo” ou similar. Neste caso, o futuro adoecimento ou morte do trabalhador terá ocorrido “dentro da lei”. É como uma permissão para matar.
A: Há obrigação de notificação de todos os acidentes e doenças relacionadas ao trabalho? Há doenças de notificação compulsória? Qual a importância da emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT)?
LS: Todo e qualquer acidente pelo exercício do trabalho, mesmo sem afastamento, deve ser notificado, inclusive os que atingem, por exemplo, servidores públicos federais (há um sistema próprio de notificação). As doenças relacionadas ao trabalho equiparam-se aos acidentes, para todos os fins legais. O Ministério da Saúde também define como agravos de notificação compulsória, via SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação): acidente com óbito, mutilações, exposição a material biológico, acidentes que envolvam crianças e adolescentes, lesões por esforços repetitivos, entre outros. Infelizmente, temos uma enorme subnotificação. A emissão do CAT é fundamental.
A: O Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19 prevê a vacinação prioritária de pessoas que sofrem de comorbidades. Pensando na realidade dos trabalhadores e na dificuldade de acesso a um laudo médico do SUS, principalmente com o colapso das unidades públicas de saúde, qual o papel que o SESMT (Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho) das empresas pode desempenhar para que os trabalhadores possam se habilitar à imunização prioritária? Como fica o caso das pequenas empresas, que não têm SESMT?
LS: Pessoalmente, acho o atual modelo de SESMT esgotado pelo tempo. Isso não significa adesão às teses extremistas que defendem a terceirização do serviço, ao contrário. Os SESMT ainda podem ser importantes elos de uma política pública para a prevenção de agravos à saúde nas empresas, bastando reforçar as garantias de seus membros contra, por exemplo, demissões imotivadas, e estabelecer novas e contemporâneas atribuições. No caso citado, estes serviços poderiam prestar um auxílio inestimável, até porque acompanham a saúde dos trabalhadores, muitas vezes por um largo período de tempo e estabelecem prontuários e procedimentos médicos. Já as pequenas e microempresas deveriam ser alvo de políticas públicas que supram as suas necessidades e deficiências na área, sem que, para isso, tenhamos que criar uma casta de trabalhadores com menores direitos.
A: Como tem funcionado a inspeção do trabalho durante a pandemia, e quais as suas principais frentes de atuação para assegurar a observância das normas de saúde, segurança e higiene do trabalho nesse período?
LS: A inspeção do trabalho no Brasil foi grandemente impactada pela pandemia, até porque o seu quadro de servidores é pequeno, com uma idade média expressiva. Estamos há muitos anos sem concursos públicos, sequer para reposição das vagas por óbitos e aposentadorias. Hoje, para a fiscalização presencial, apenas situações críticas, como o combate ao trabalho análogo à escravidão, trabalho infantil e situações de risco grave e iminente à integridade. Os demais AFT remanescentes estão deslocados para atividades de fiscalização remota que, embora com limitações, podem trazer resultados. Como todos os brasileiros, temos muitos motivos para a aflição. Talvez venha do nosso adoecimento enquanto sociedade, com o avanço da precarização do trabalho, com o pouco significado dado à vida humana e ao meio ambiente. Talvez repouse na indignação, diante das estimadas centenas de milhares de mortes evitáveis pela Covid-19. Talvez esteja na metafísica transgressora de John Donne: “Não perguntem por quem os sinos batem, eles dobram por nós”.
Entrevista publicada em https://www.amatra1.org.br/noticias/?inspecao-do-trabalho-no-brasil-ficou-prejudicada-na-pandemia-diz-luiz-scienza=&utm_source=whatsapp&utm_medium=social
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