top of page

DA FAMÍLIA? QUE NADA! Sonia de Jesus, presente! Humberto Camasmié, presente!

Empregada doméstica negra ‘desresgatada’ do trabalho escravo; sistema nacional de Justiça travado em prol da insustentável defesa de um magistrado de alta patente; narrativa patronal estapafúrdia; fiscal processado: o quartinho segue natural no Brasil das elites...



Falta hoje[1] um mês para completar um ano da operação de resgate da Sra. Sonia Maria de Jesus da residência do Sr. Jorge Luiz de Borba e Ana Cristina Gayotto de Borba, ele desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. E já se completam 9 meses da escandalosa operação[2] de desresgate desta mulher negra, hoje com 50 anos, dos quais 40 passados a serviço da família Borba, entre quartinho e lavanderia, a cuidar da criação de filhos e netos, sem nunca ter tido oportunidade de conhecer a vida ou de se reconectar com a sua família biológica.


Desresgate realizado com a anuência do Ministro Campbell Marques, do Supremo Tribunal de Justiça, e do Ministro André Mendonça, do Superior Tribunal Federal, numa sequência de decisões qualificadas de ‘teratológicas’ pelo subprocurador Geral da República, Dr. Carlos Frederico Santos. E, ao que parece, tragicamente corporativistas.

Uma situação inédita: nunca vista nos anais do combate moderno ao trabalho escravo, iniciado em 1995, quando enfim se deu uma primeira ruptura com as décadas de negacionismo assumido pelo Estado brasileiro.


Um combate iniciado com a operacionalização do Grupo Móvel e a construção gradual da política nacional de erradicação do trabalho escravo, pautada em dois fundamentos basilares:

- a restauração dos direitos da vítima e

- a responsabilização dos culpados por sua escravização, na perspectiva da reparação integral de um crime para o qual o Estado brasileiro, em 2016, foi alvo de Sentença da Corte Internacional de Direitos Humanos, no caso ‘Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Estado brasileiro’.


O Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela violação do direito das pessoas a não serem escravizadas, um direito que fundamenta o chamado jus cogens, e obriga à reparação integral das vítimas e à prevenção da repetição sistêmica das violações. A mesma Sentença designou a discriminação estrutural histórica – expressada no persistente racismo estrutural - como raiz da permanência deste crime no Brasil, a exigir políticas específicas de enfrentamento, sem direito a retrocesso. E reprisou o dever de investigação e punição dos responsáveis, reforçado ainda pela afirmação da imprescritibilidade do crime de trabalho escravo, crime erga omnes.


Ora o que temos, há um ano, é um sistema nacional de Justiça travado em prol da insustentável defesa de um dos seus agentes de mais alta patente. Não surtiram efeito ainda as inúmeras tentativas de abrir brechas nesse sistema: Habeas Corpus, pedidos de Amicus Curiae, Conselho Nacional de Justiça, Comissão Interamericana de DH, Relatorias da ONU, mobilizações de norte a sul do país.


O que temos é um sistema de justiça atuando sob o manto do segredo, concentrado na defesa patética de uma narrativa oportunista, autorreferencial, criada de última hora pelos investigados, com a finalidade evidente de afastar qualquer incriminação penal.

O trágico é ver tal narrativa ser assumida pela magistratura suprema.


Essa narrativa recorre outra vez à mais abjeta naturalização de uma relação de exploração reconfigurada em relação de família, em total contraste com a situação constatada e comprovada por agentes públicos no cumprimento estrito do seu mandato de investigação e fiscalização. Uma narrativa que, em outros ambientes e com outros termos, sempre vem sendo apresentada pelos modernos escravocratas para justificar o injustificável: a permanência do quartinho e da senzala.


Ora o que temos há um ano é uma declarada deslegitimação da política nacional de prevenção e combate ao trabalho escravo, de modo específico da atuação autônoma do Grupo Móvel de Fiscalização, coordenado pelo Ministério do Trabalho e participado pelo MPT, MPF, DPU e a Polícia Federal, como bem ocorreu neste caso específico.


O que temos é o próprio coordenador da operação, o AFT Humberto Camasmie, sendo investigado penal e administrativamente - a ele inclusive, neste momento, nossa mais profunda expressão de apoio e solidariedade.


O que temos sobretudo é a deliberada re-vitimização da pessoa da Sra. Sonia, indo ao extremo de ela permanecer impossibilitada de se comunicar e conectar livremente com a própria família biológica, ao convívio da qual foi retirada de forma ilegal desde o primor da adolescência.


A presente Audiência Pública no Senado Federal acontece em atendimento ao requerimento formulado em 20/09/2023 pela CONATRAE quando, reunida de forma extraordinária a pedido da Comissão Pastoral da Terra, da Anamatra[3] e da Contar[4], expressou sua absoluta inconformidade com a situação criada pela autorização concedida à família do Desembargador Borba de ter a Sonia “restituída ao convívio familiar” (aspas) e assim os Borba reaverem a sua empregada, então apresentada como ‘filha em processo de adoção psicoafetiva’. Naquela ocasião a Conatrae afirmou e depois confirmou em Nota Pública[5], repisada em Manifestação recente dirigida ao Ministro do Trabalho e ao Ministro dos DH[6]:


1 - É absolutamente inaceitável o processo de retorno da vítima Sônia à ‘cena do crime’: uma situação de violência na qual, comprovadamente, sofreu um conjunto de violações de seus direitos mais básicos, sendo-lhe negado o acesso a políticas públicas e direitos fundamentais – documentação civil, educação, saúde, trabalho decente, moradia, convivência com a família - situação agravada ainda por se tratar de mulher com deficiência à quem foi impossibilitado o direito de se comunicar bem como de sair do ambiente relacional formado, exclusivamente, pela casa e a família dos seus ‘donos’.


2 - É irrelevante o alegado consentimento da vítima para voltar ao convívio com seus empregadores. Sejam quais forem as condições em que foi colhida a suposta concordância da Sra. Sônia para seu retorno, em matéria de tráfico humano, o consentimento é irrelevante. Mais ainda se não foi nem oportunizado o devido tempo para realizar um acolhimento que possibilite elaboração da situação vivenciada, com oitiva de especialistas, garantindo-se que a decisão da vítima não estaria viciada. E mais: a Lei Maria da Penha estabelece que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar terá contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas.


3 - É igualmente inaceitável o descrédito público lançado sobre a efetividade da política nacional de erradicação do trabalho escravo, ao desmerecer publicamente as prerrogativas funcionais das instituições mandatadas pelo Estado brasileiro para combater o trabalho escravo.


A política de erradicação do trabalho escravo no Brasil é destaque internacional por oferecer mecanismos institucionais e arcabouços legais e normativos que possibilitam a cessação da violação de direitos, a responsabilização dos envolvidos nas esferas administrativa, trabalhista e criminal, e a tentativa de reparação dos danos sofridos.


A história da Sra. Sônia evidencia quão profundas permanecem as raízes de uma história escravocrata, herança maldita ainda presente na sociedade brasileira, esmagando sem trégua a vida de mulheres negras. A Sra. Sônia tem sido vítima do racismo estrutural e institucional, do capacitismo, da violência de gênero, sendo-lhe negados direitos fundamentais. Seu retorno e permanência na família investigada representam a manutenção simbólica deste conjunto de desigualdades que marcam o país.


“Estas são graves violações à política nacional de erradicação do trabalho escravo, originadas em atos e omissões do próprio Estado brasileiro”.


Não por acaso, a categoria do trabalho doméstico é a atividade trabalhista com o maior número de empregadores na Lista Suja do trabalho escravo divulgada no último dia 5 de abril: dos 248 empregadores adicionados à lista, 43 eram ligados a trabalho doméstico. PNAD 2023 contabilizou 6,1 milhões de pessoas em trabalho doméstico no Brasil. Deste total, 91% são mulheres; duas em cada três são negras; apenas uma em cada três tem carteira assinada.


Também afrodescendentes, temos 4 em cada 5 das pessoas resgatadas de trabalho em condição análoga à de escravo no decorrer dos últimos 30 anos, cujo total já passa de 63 mil pessoas.


Sonia é uma delas. Vidas negras importam. Todas as vidas nos importam. Sonia, presente! Humberto, presente!


por Frei Xavier Plassat, OP, da Comissão Pastoral da Terra, representante da CONATRAE na mesa da Audiência Pública


[1] 06/05/2024

[2] 09/09/2023

[3] Associação Nacional dos Magistrados e das Magistradas do Trabalho

[4] Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais

Comments


bottom of page